lusitânia liquefeita – um país paradoxal
«o método surpreenderá o leitor –mas é o que me cabe»
ibn khaldoun
prolegómenos ŕ história universal

Francisco M. Palma-Dias

 

 

na europa, que integra em sua extrema ocidental, portugal, para além de ser um vero estado-nação – avis rara, partilha apenas comespanha e frança a singularidade do seu território ser potenciado pela interacção dos três climas dominantes no agros do “velho mundo”: atlântido, mediterrânico e continental. Ora,ao ter uma extensão que é 1/4 da primeira e 1/5 da segunda, manifesta-se nele mais acentuadamente a ocorrência dos microclimas finistérricos. Mas,

 

o que não chega a ultrapassar a centena de milhares de km2, ao triangular com o atlântido arquipélago dos açores [ilhas vulcânicas na fractura da placa americana com a europeia, são os únicos produtores de chá e ananás, também da melhor manteiga e queijo de vaca mais toiros de corridas à corda, culminando em bodo com capela própria nas festas do espírito santo

 

 singularidade inultrapassável, até hoje, do cristianismo – cristianismo português que a inquisição aniquilou; apontava, com a celebração, no pentecostes e sob o império de três cônjuges representando as três idades, de um bodo onde as linguas de fogo abriam as portas da prisão uma vez ao ano, apontava já para o que hoje vislumbramos como futuro desejável; foi filha de um sonho da raynha isabel, aragonesa santificada que sentou à mesa o reyno do cônjuge e poeta dionys – o das três religiões do livro e do desenho templário da fronteira continental mais antiga na europa de hoje, e cadinho da língua com que se falava à volta da mesa provando nesse toiro alfim sacrificado para virar em amor a roma, a velha matrona do mediterrâneo, essa carne do toiro pastado em atalante, corrido desde longinquos ecos cananeus e da creta minotáurica mas sacrificado à portuguesa, essa carne excelente, ainda hoje está patente – e náo falemos do peixe…]

 

para o fecho do triângulo: o sub-tropical e siroccoteado arquipélago da madeira – já na placa africana, mas santuário da floresta laurissilva do continente europeu e epicentro da flora macaronésica [endemismos que vão dos arquipélago dos açores a cabo verde, e que também ocorrem nas costas portuguesa, marroquina e mauritana sob a insígnia do dragoeiro ] reparte com açores o terem sido passagem obrigatória na volta d’oriente em caravela desde o atlântico sul para o norte, quando ocorreu a primeira globalização do mundo – este terceiro vértice,cultiva inhame d’áfrica e milho incaico e fruta em banana e abacate, manga e anona mais o vinho que sabeis e que foi o de torna viagem para o brazil - onde seus hortelões provindos do algarve [reyno surreal na extrena sw do continente] introduziram a cultura da cana e a horto-fruticultura no trópico e festejaram com cachaça o que fora com poncha

 

neste triângulo se circunscreve, em português, a maior e mais piscosa e diversificada zona marítima da europa – transfigurando portugal numa arquipelágica lusitânia liquefeita

 

a consequência é uma ríquíssima e original bio-diversidade e um milenar desafio criativo para o hortelão, o lavrador de sequeiro ou o agro-sivicultor e sua pecuária, afeiçoarem novidades e apurarem endemismos –beneficiando igualmente a pescadores, marnotos, recoleção e caça, e  processos de transformação e conserva que chegaram  até aos nossos dias
 

históricamente, a ponta sw da europa já fora reduto da vida durante a última glaciação e será o lugar onde o velho mundo depura durante dois mil e quinhentos anos frente do mar em trevas greco-romanas, nele se cruzando mais cabalmente culturas e povos oriundos do passado mediterrâneo. continental, atlântido norte e, alfim e há quinhentos, lugar que receberá também o primeiro impacto do novo mundo

*

a variedade de microclimas que os finisterras geram  – europaque por sua vez mais não é que sub-continente daeurásia, fizeram dafrança –desde a revolução, e daespanha
– após a transição autonómica, os lideres mundiais, não só de um mar e agros vaticinados para o rayon gourmet, mas também o lugar do cânone e da eclosão de uma gastronomia cosmopolita e criativa de matriz romano, mas que hoje, ética e esteticamente, tira partido das potencialidades endémicas em reforçados sabores e singulares texturas que apontam para originais fusões e maridagens, defendendo-as,  numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, em agricultura integrada, pecuária em pastorícia, pesca da costa, salinaria, caça e recolecções simultaneamente tradicionais e ecológicas

 

no clima, a vertente continental, que através da nortadaveicula a friagem ou o estio “continentais” da meseta castelhana, conjuga-se em portugalcom o atlante e mediterrâneo.  A de poente, em gulf stream e vento SW manifesta-se em águas temperadas e chuva abundante nos açores mais o terço nortenho do território. A de nascente, acolitada do vento saariano de SE – sudeste a que o algarve chama levante,  o alentejo vento suão, siroco, do árabe xarük, na madeira, funde com o atalante na mancha do sobro e com a nortada na mancha de azinho. São os restantes 2/3 de portugal. Dou o nome genérico de sulitânia ao território marcado pelo homem neste
ecossistema irrepetível: o montado    

 

les terroirs  – a interacção dos terrunhos com os microclimas,produz endemismos e destina-nos para empresas matriciadas em denominações de origem protegida [DOP] ao serem únicas suas bondades em gastronomia e saúde. Por isso também acolitando o que vai da saúde pública à fitoterapia e perfumes, das termas à talassoterapia e spa em fontes santas, mais os sequentes urbanismo, arquitectura e design de uma arte de viver que culmine numa jubilatória simbiose com a terra e o mar, ventos e sol.

 

assinalado este caso singular num mundo entretanto globalizado, valorizam-se ainda mais as especificidades climática e cultural portuguesas. Elas estão patentes na sua alimentação mediterrânea de cariz moçárabe em fusão atlântida [o porco do montado, a sua gordura conjugada com o azeite, as ervas bravas no cozido judaico-berber, a tagine em cataplana para marisco com charcutaria, ovelha e cabra velhas cozidas em vinho, o azeite e alho com a batata do perú e o bacalhau da terra nova

 

gastronomicamente, destaca-se o azeite com a banha e toucinho alentejanos como tempero, o cereal em pão ou papas [xaréns], a abundância de hortaliças, leguminosas e fruta, o consumo frequente de peixe, o vinho às refeições, o baixo consumo em carnes vermelhas e o uso frequente de ervas aromáticas, alho, limão, frutos secos. Trata-se de um padrão alimentar caracterizado por uma grande variedade de alimentos, sazonais e frescos –optimizando o seu conteúdo em micro nutrientes e anti oxidantes e tendo muitos deles, em castas endémicas, valência nutrocêutica. Esta alimentação padroniza uma vida em que a  combinação de ingredientes, receitas e modos de cozinhar é também o fruto dos povos que, privilegiadamente, aqui se cruzaram.

 

partilhamos o levante com a fimbria norte do magrebe e a espanha  ocidental - a raia do corcho - mais a sua vertente sul, a que se acrescentam a catânia e sicília:  desde chipreeCreta:é o colar das ilhas do mediterrâneo.  A  oliveira chega ao nordeste trasmontano; somos banhados de fio a pavio pela corrente de águas temperadas que volteiam desde as antilhas e mar dos sargaços até ao mar português – o que faz dos arquipélagos, das rias e grandes estuários viveiros naturais de marisco e peixe da costa – riquíssima em algas (que o japão valoriza nas vertentes gourmet e nutrocêutica).

 

a singularidade pluricultural nasceu  da interacção das sucessivas migrações continentais com as marítimas: conjugação, a sw, do mare nostrum e do mar tartêsso, mar fusional cuja concava  – de cádis a tanger, de sagresa safi, da rocaa khir, se abre para o atlântico

 

a especificidade climática irradia do nosso epicentro estepário - que vai dos campos deouriquee garvãoaté onde a margem esquerda amareleja com badajoz à vista e que produz a única grande mancha verde de sobro e de azinho a nível mundial: quase dois terços do território continental português

 

com a revolução liberal, anulando o imenso feudo da ordem de santiago, surgirá o montado, ecologicamente sustentável e glorificado no que vai do cavalo da lezíria e do toiro do sobro à abetarda dos campos brando e de ourique, da ovelha e perdiz campaniças, do porco de garvão, da vaca mertolenga. E culmina em pão, vinhos, azeites, queijos, leguminosas e fruto seco, cogumelos e ervas bravas -sem esquecer as cabradas, favais e tremoçais de um alfarrobal que, a sul, no reyno surreal de um algarve ao abandono, perfaz o décimo da produção mundial [mas saqueada pelas multinacionais mor da vampirização da grainha de que se extraiem mais de duas centenas de aplicações industriais]

 

manifestam-se então as bondades da espuma de sal de castro marim e tavira, do biqueirãoe atum desotavento, da sardinha e moreia de barlavento, dos bivalves da formosae ria dealvor, do sargo e marisco da costa vicentina, do salmonete de setúbal e, da batata doce de aljezur ou da comporta, à couve galega com castanhola trasmontana; da pera rocha do oeste à maçã de esmolfe, de castas em trigo para o pão sulitano, ou de leguminosas para o cozido mocárabe, de uva bastardinho, trincadeira, aragonês, castelão e touriga portugal para os tintos, ou alvarinho, arinto e antáo vaz para os brancos; da azeitona galega, cobrançosa, verdeal, cordovil ou maçanilha para o azeite; da especificidade em sal, sol, e regime de ventos para a seca do bacalhau do atum ou do presunto. De tudo isto e de muitíssimo mais, patenteiam-se artes e jorra criatividade na lavoira – horta e pomares de rega ou de sequeiro – e este até ao estepário do campo branco e envolvente montado, na pesca e salinagem em conjugação com as diferençadas achegas culturais já assinaladas –tudo isto diferencia portugal das outras quatro regiões do globo [califórniae chile, áfrica do sul e austrália sw] que benificiam de clima semelhante

 

desta conjugaçáo climática e cultural nascerá uma língua em cante sulitano, nascerão  aventureiros – já tiveram rua na alfama moçárabe, nascerão as cantigas, nascerá a monarquia das três religiões do livro… surgirão azeites, queijos, mais mil e uma produções em vinho e pão de marnotos, agricultores, mariscadores e pescadores e…paradoxal desgraça…

 

…padecentes crónicos de uma governança que há cinco séculos parasita ou aliena as excepcionais bondades que produzem e para que estão vaticinados.

 

O PARADIGMA PERDIDO

 

ironia: a crise bate no fundo quando a artesania salineira do sotavento algarvio -que sobreviveu in extremis aos tratos de polé de sucessivos governos-  é celabrada de paris a barcelona e onde quer que se valorize a  gastronomia como arte e engenho –da fusão ao «terroir», mas

 

de bouche à oreille ou de supetão, ecos ou feed back sobre o peixe da costa ou borreguinhos campaniços, enchidos barranquenhos ou bísaros, da variedade e excelência em queijos de ovelha, azeites e vinhos, da potencialidade da farinha da alfarroba em superar em todos os sentidos a doçaria e indústria do cacau e chocolate, mas

 

dizem-nos que o agros andaluz e estremenho nos entram portas adentro mor do olival, do porco de bolota e do leite de ovelha; que de françaitália e passando por espanha, é o ver se te avias com o nosso mar; que o japão leva a alga e o atum e que sonham com o espadarte e salmonete de setúbal, a ostra de alcácer,o sargo e o safio da costa vicentina, o percêbe  de sagres, a eiró da ria de alvor, a sardinha e moreia de lagose portimão, o besugo e a anchova de quarteira, a cavala de faro, o berbigão e as bocas da ria fermosa a, a dourada e santola de olhão,o robalo e peixe espada da fuzeta, o polvo de santa luzia, o lingueirão de cabanas, a amêijoa de cacela, o camarão e o linguado da baía de monte-gordo, a corvina da desembocadura guadiana

 

e dizem-nos que chefs  europeus começam  a instalar-se em portugal pelo gosto de trabalhar à beira do borreguinho de castelo brancoou do porco bísaro, do cogumelo de montado, das leguminosas do barro estepário ou do tomate e feijão d’ almuinha -as nossas estrelas michelinserão também o fruto dessa conjugação

 

reabrir de dentro para fora as portas que o estado selou para proveito de intermediários parasitas servindo uma economia colonialóide, fá-lo hoje, de revés, a sociedade da informação numa economia globalizada –o que provávelmente impossibilitará a destruição dos derradeiros ex-libris de uma produção agro-pecuária, florestal, marnoteira e piscatória cuja lógica de incrementação e defesa é a de ser ecológica e partícipe imprescindível na consagração da mais original das gastronomias da alimentação mediterrânica  e de suas produções de qualidade impar

esta gastronomia mediterrânea, de cariz moçárabe em fusão atlântida, tem por base o cereal panificado; atalanta o azeite até ao mar do bacalhau; ensopa a carne de borrego com toucinho sulitano; da tagine chega à cataplana, apurou empadas e almôndegas, faz massa folhada

 

tratar-se-á então de, desde a casa e seu entorno: sustentabilíssima, desde que se pratique uma agricultura integrada e que articule conformação e formação, tecno-ciência e desenho que potenciem a excelência da produção DOP para que climática, histórica e culturalmente estamos fadados

 

joão de araújo correia ajoelhava-se ao beber um cálice de vinho fino – aquele a que o comércio globalizou em porto

 

ora, desde há três mil anos, o sal do que hoje éportugal chegava aos fundos do mediterrâneo graças ao impulso de sermos eldorado em minérios para o tempo e templo solimão e depois, por arrasto e desde balsa, sal e peixe -sobretudo sardinha, biqueirão e cavala em garum, a grã -da púrpura, o figo, o azeite, o mel e a amêndoa. Há quinhentos anos, as sinagogas do “velho mundo” bebiam vinho fino e judengo do algarve eportugal era o nome da laranja doce em todas as medinas e até aos fundos do mediterrâneo -sem esquecer que na flandres do pano e do trigo se festejava la mer de cocagne com os nossos arroz doce, figo e amêndoa, ora

 

passar da pré para a pós-modernidade lobotomizado por sucessivas inquisições que exterminaram ou diasporizaram as elites ilustradas impediu «inscrever» «aquilo» que josé gil não nomeia mas que aqui delineamos, deu no país da trapaça e do faz de conta, numa república de tesos jacobinos ou de sacristia e, culturalmente, pequeno-burguesa

 

PORTUGAL

FUSÃO MOÇÁRABE DO MEDITERRÂNEO

[FENÍCIO, GREGO, PÚNICO, ROMANO, BIZANTINO]

COM O ATLÂNTIDO

- DO BASCO AO NORMANDO, e até mar bacalhoeiro, no

FINISTERRA VICENTINHO

aquele que desde

LISBOA

centra

PORTUGAL

 

à volta do ano mil, após dois séculos e meio da implantação omeiaa espanha goda, tardo romana e bizantina, moçárabe, era o cristão que vivia no al-andaluz[a península até às cumeadas dos maciços central ou cantábrico, numa linha divisória que ia desde o porto – no douro, a barcelona]

 

no entretanto e a lume brando, o cristão fora culturalmente arabizado

 

o moçárabe transmitiu os elementos lexicais árabes para o futuro português e demais línguas peninsulares. Em troca, foi ele que modulou a arquitectura andalusi com o pátio em claustro de arcos em ferradura

 

musta’rib: o que se fez semelhante ao árabe

 

o árabe falava a língua das tribos nómadas entre caravanas de seda e rebanhos no árido, pontuadas por oásis de medinas sofisticadas. Aláa imporá ao profeta maomécomo língua divinizada sob o jugo monoteísta de uma guerra santa contra o paganismo

 

era obrigatória a leitura do livro - na refinadíssima língua daquela poesia udri que dará mais tarde aljamias em cantigas de amigo ou de escárnio, de amor terrunhento ou cortez

 

[não esquecer que a submissão monoteísta islâmica obrigava à busca do conhecimento como dever religioso. Para os cristãos a revelação da bíblia era, no medievo, a única fonte. Fonte fechada num livro que ninguém lia. Só os canónicos

para meca e medina, pelo contrário, foi um frenesim de requintes em despojos intelectuais –desde achina eindia extremas e da vizinha pérsia até à fina flor greco-romana de bizâncio-constantinopla, jerusalém e alexandria, damascoe bagdade]

 

alfim, lá, além do fim do mar interior, no fim do que era então o mundo conhecido, o abençoado e liberal al- andaluz -omeia, seu mar tartêsso, seus pomos hespéridos, suas campinas regadas, seus rios de cheias niláticas, seu clima único potenciando o agros cujas sementeiras tinham germinado desde o punjab ao crescente fértil

 

lá –era o aqui onde o vento do deserto e o clima mediterrânico se conjugam em apoteose com o atlântido e a nortada de cariz continental

 

lá – aqui onde o gulf-stream saracoteia e zambra entre sagres e safi,entre cabos da rocaekhirdo marrocos de hérculesem sua tangitânia até ao susargânico, criando o eco-sistema terra-mar de influxos tricontinentais na irrepetível sulitânia

 

 desenha-lhe o mapa a mancha do farrobal, sobreiral e montado que sobe em fímbria pela costa desde a mauritâniae que se espraia por todo o sul e centro de portugal, serra de huelvae estremadura espanhola

 

a singularídade das suas bondades manifesta-se em raças e castas autóctones  e mestiçagem cultural que permite à alimentação mediterrânica fusionar com a atlântica [peixe, trigos rijos para cuscuz e papas, trigos moles para pão e fidéus] mais a punção continental celta e goda – mas sobretudo romana [porco, cogumelos, ervas bravas] - e mais ainda: naturoterapias, termas, cosméticas, perfumes, alquimias, gnoses, sábios prazeres

 

o montado demarca-se a sol e sul pelo pomar de sequeiro algarvio enquanto a norte a oliveira chega ao derradeiro mediterrâneo - no alto douro - e se articula com o souto do planalto trasmontano

 

entremear com a bolota ou a castanha, nas relvas, a abrupta passagem para o pasto no que respeita à campaniça, ao porco – alentejano ou bísaro, à mertolenga, ou à barrosã propicia, em doses homeopáticas usadas como tempero, alimentação saudável na cúspide do saborido; excelente pão de trigo; magníficos vinhos, azeites, queijos e sal, incomparáveis frutos secos e mel.

 

Em suma, o que exportavam romanos e depois os árabes e alfim, nossos judeus  –igualmente dignos e naturais herdeiros da já delineada e emergente rede comercial da banca e marinha templárias
[após o insucesso – que sabeis, desta primícia, mor do papa e rey de frança, com tal sucesso, nossos judeus compraram terra na demarcação templária, fizeram vinhas e lagares, e, do seu vinho, a marca insígnia da rede comercial que ia degibraltar ao bósforo e do gharb ao báltico. Alfim e antes, no cabo, já tinham traduzido o que depois imprimiram. E assim potenciaram o valor do figo e da amêndoa, da estiva e da grã, da castanha e do tremoço, contudo

 

os árabes reintroduziram a cultura e ciência greco-romana e introduziramo vero oriente –sino-indo-persa- no al-andaluz : as indústrias do papel, do couro, da seda e do álcool; o cultivo do arroz, da cana-de-açúcar, da romã, do alperce e dos agrumes; implantaram o pomar de sequeiro no barrocal e o de regadio nas campinas, introduzem o espinafre, o espargo, a beringela, a chalota, a melancia; e subiram até onde chegava a oliveira, timbre da tríade da alimentação mediterrânica: lavoira de cereal alternando com tremoço, fava ou grão-de-bico, griséu ou lentilha, fava ratinha

 

[faveta] ou ervilha quadrada [ervanços, chícharo] – base proteica de cozidos, guisados e estufados - e acrescentaram à horta a conjugação atlândida com o peixe da costa; mais o vinho e azeite que vinham dos tempos romanos. E no semi-árido xistoso, pearas e rebanhos, almuinhas para o hortejo

 

nas discrições dos geógrafos viajantes al-razi e al-idrici é claro que o agros não só alimenta a cidade como se enriquece com a valorização que esta suscita ao integrar os seus produtos de excelência numa imensa rede comercial

 

*

no que hoje éportugal, enaltecem coimbra, uma das mais singulares regiões do mundo muçulmano devido ao clima atlântico, cálido e chuvoso. Exaltam seus pomares de maçãs e peras, o azeite, a riqueza piscosa do mondego e sobem da idanha à estrela do maciço central, pelas excelências da carne e do queijo apuradas pelos clãs berberes – que igualmente introduzem os trigos, o mourisco e o rijo – a que chamávamos preto; entre santarém elisboa destacam o mel perfumoso e a caça – ao falcão, e deslumbram-se como uma das zonas agrícolas mais ricas que conhecem graças às niláticas cheias do tejo – e, também, seu abundante peixe, suas fabulosas éguas; de badajoz à bejao pão, o azeite e o borrego

 

a sul, consideram al-faghar– de  nieblaao cabo chakrach - a região mais rica de todo o gharbgraças ao azeite e vinho do al-jarafe – também seu cártamo para a tinturaria, mais a costa que vai até pharum - celebrada pelo âmbar do cachalote, pelo atum, riqueza e variedade em peixes - alguns só aqui se conhecendo. Passam dos figueirais de cacela ao elogio hortícola na campina de santa maria e culminam na exaltação de chelb, seus pomares de regadio e sequeiro - figo e amêndoa de sabores incomparáveis, e,  também a vinha, o mel, as nozes, as castanhas, as águas, os pomos, a madeira - monchique ,a montanha sagrada que se alcandora a norte, sem esquecer o peixe da costa e do arade.
Que trouxe oárabe?

 

melhoramentos na horta e pomares, mais fruta e verduras, assados, ensopados, cozidos; restrição pública ao porco -mas continuou a haver matança na casa dos cristãos

 

harisa dá migas, tarid, ensopado - a açorda já cá estava desde o megalítico; guisar ou estufar a lume brando; caça em arroz, pássaros em fritada; almôndegas, empadas e massas folhadas; cardamomo, coentros, gengibre, açafrão, cominhos, cravinho, água de rosas; frutos secos cozinhados com sal e limão; quase toda a doçaria –da popular à conventual. Em suma, sábias misturas de cheiros, sabores e texturas

 

mais higiene; grande variedade de utensílios de barro com ou sem campânula; poesia e canto, vestuário mais confortável e condizente com o clima; alcóois, perfumes, ciência, alquimia, livros de agronomia e cozinha - desde o século VII, ibn razin

 

 requinte. Sobretudo requinte com ziryab - a pedra de toque de um apogeu que jamais será igualado pela civilização árabo-berbere

 

[abou al-hasan, nascido no iraqueem 789 e no seio de uma família de origem persa, depois de altos estudos em letras e ciências viaja para ocidente, é seduzido pela sua liberalidade e instala-se na córdovade 822e do emir abd al-rahman IIonde ficará conhecido como ziryab – melro negro, ao fundar a escola musical andaluza: cria o conservatório que revoluciona os métodos de ensino; inventa o alaúde de cinco cordas e impõe o plectro em forma de garra de águia –longo e flexível; introduz novos instrumentos de percussão

será ele o inspirador de uma arte de viver com moda vestimentária para inverno, primavera e verão, institutos de beleza, gosto pelo xadrez e, alfim, o culto de uma gastronomia requintada –transmite aos cordoveses as receitas mais elaboradas da cozinha de bagdad, e acaba com as refeições em amalgama numa confusão de alimentos

doravante, a refeição começará com a sopa, seguir-se-ão entradas de carne e relevés de aves cuidadosamente temperados, culminar-se-á com doces de nozes e amêndoas no  mel, nógados e pinhoadas, polpa de frutas aromatizadas com baunilha e recheadas com pistácios ou avelãs. E impõe os copos de cristal em lugar dos metálicos, assim como os atoalhados de coiro fino - cordobano]

 

nota biográfica

f.m. palma-dias nasce em 1942 no sul de Portugal e na fronteira com a espanha andaluza. Em Bruxelas estuda cinema, funda o teatro-laboratório le clou dans la langue e será co-fundador do le paradoxe, restaurante vegetariano de cunho mediterrânico. De 72 a 92 consagra-se ao budismo tibetano em Paris e Lisboa e viaja pela África, Ìndia e Brasil. Publica três livros de poesia. Instala-se, desde 92, na fazendaem castro marim onde funda com a antropóloga eglantina monteiro a
companhia das culturas

 

 


Invisible Culture

Issue no.14: Aesthetes and Eaters
- Food and the Arts


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